“Momento Delicado”, por Ir. Joaquim Daniel Maria de Sant’ana, FBMV.

    Desde o
Capítulo de julho de 2012 um princípio contraditório se introduziu no
seio da FSSPX: pode-se conservar e transmitir a fé na sua integridade,
ao mesmo tempo se submetendo à Roma conciliar. A palavra mágica que
fascina e turva a realidade da armadilha é “garantias”: Roma dá
garantias, a Tradição Católica se mantêm e se desenvolve, Roma continua
como ela é
[1].
    Mas se é
assim, para que esse tão falado e ocultado “preâmbulo doutrinal”? Se a
Roma conciliar continua como ela é, então cada um com a sua doutrina, as
garantias resolvem tudo. E, no entanto, nós sabemos a que excessos se
chegou com a declaração doutrinal de abril de 2012. A “compreensão comum
da fé”
[2],
que só se resolvia pela troca constante de óculos, é uma pedra de
escândalo que fez ruir  o edifício de confiabilidade das autoridades da
FSSPX.

    Além disso,
termos como “acordo”, “reconhecimento” ou “normalização canônica” não
nos devem fazer esquecer de que se trata de uma submissão à autoridade.
Não são duas potências que realizam um acordo diplomático onde cada uma
das potências assume direitos e deveres conservando integralmente sua
soberania. Trata-se aqui de uma congregação religiosa frente ao poder
supremo da Igreja. Trata-se do Vigário de Jesus Cristo diante de seus
súditos. São os súditos que julgarão do cumprimento ou não das
garantias?
[3]

    Esta
novidade é uma bomba-relógio que desarmará a pequena cristandade
resistente, tornando-a vulnerável a outras bombas bem mais terríveis, as
do Vaticano II. Por causa de sua importância estratégica, ela é
guardada com grande zelo por todos aqueles que desejam a desastrosa
submissão a um pontífice que está a léguas de ser plenamente católico
[4].
As circunstâncias adversas podem forçá-los a tudo, contanto que não se
renuncie à conquista sutilmente subversiva do Capítulo de julho.

    A recente
declaração de 27 de junho último é um exemplo representativo desses
recuos estratégicos que podem predominar em certas circunstâncias
[5].
O texto contêm muitas considerações pertinentes a respeito do Vaticano
II e da crise na Igreja, consequência deste, retomando uma linguagem da
qual estávamos um tanto desabituados, em se tratando de pronunciamentos
oficiais da FSSPX. Mas eis que, chegando ao ponto 11, lemos isto:
    “Este amor
pela Igreja explica a regra que Dom Lefebvre sempre observou: seguir a
Providência em todo momento, sem jamais pretender antecipá-la.
Entendemos que fazemos o mesmo, seja que Roma regresse logo à Tradição e
à fé de sempre – o que restabelecerá a ordem na Igreja -, seja que ela
nos reconheça explicitamente o direito de professar integralmente a fé e
de rejeitar os erros que lhe são contrários, com o direito e o dever de
nos opormos publicamente aos erros e aos fautores desses erros, seja
quem for – o que permitirá um começo do restabelecimento da ordem”.

    Sim, como
bem observou D. Williamson: “Tenha cuidado. Como diziam os latinos, “o
veneno está na cauda”.” A sutilidade foi intensificada, junto com uma
preparação doutrinária bem cuidada
[6],
mas continuamos no atoleiro. Ao invés da simplicidade divina da
conversão, base necessária para a confiança na autoridade, e que conduz
naturalmente à obediência, temos a alternativa de “um começo de
restabelecimento da ordem”, por meio de um reconhecimento explícito do
direito de professar integralmente a fé e rechaçar os erros contrários,
junto com o direito e o dever de se opor publicamente aos erros e a seus
fautores, seja quem for.

    Muitas
palavras que transmitem uma segurança que só é aparente. Tudo depende do
termo “reconhecimento”. Na verdade, têm-se a jurisdição de suplência,
em virtude do estado de necessidade que acabrunha a Santa Igreja de Deus
desde que suas autoridades se engolfaram nos erros modernistas. Se se
troca esta pelo reconhecimento da Roma conciliar, supõe-se o
desaparecimento do motivo que nos dava a mesma. Mas o estado de
necessidade só pode desaparecer, no mínimo, pela conversão explícita do
Sumo Pontífice à integralidade do catolicismo, e neste caso as coisas se
passariam facilmente, em toda confiança, e seriam os modernistas que
pediriam garantias. E este papa católico, é claro, não as concederia.

    Mas eles
querem garantias de um papa modernista, servo da Roma conciliar, querem
garantias de se opor publicamente aos erros e a seus autores, seja quem
for. Então querem que o papa lhes conceda o direito de se opor
publicamente aos erros do próprio papa?  Seria a normalização canônica
mais ridícula da história da Igreja.

    O mais
triste é que todas essas tergiversações, toda essa ambiguidade
compulsiva, tudo isso concorre para prolongar a sedação de muitos
descontentes que, há mais de um ano, parecem tentar encontrar algum
consolo repetindo a sentença apaziguadora: “Não houve acordo”. Mas como
ela não é suficiente, uma declaração como esta poderia fornecer como um
complemento necessário: “Finalmente, nada mudou, tudo está como antes”. 
E então poderia advir um coma profundo.

    É nesse
momento que devemos recordar as palavras do nosso primeiro papa: “Sêde
sóbrios e vigiai (…) resisti-lhe, firmes na fé”, a fé viva e inabalável
que afina o discernimento e inspira a ação.

    Discernir:
primeiro veio o reconhecimento da Missa de sempre. E, ao mesmo tempo,
sua limitação e rebaixamento. Depois, o levantamento das excomunhões,
que não foi a retirada do decreto, “ato de misericórdia” das autoridades
romanas, e os que queriam justiça acabaram agradecendo e cantando um Te Deum.
Não seria agora o caso de uma FSSPX reconhecida e limitada a uma
reserva “sui generis”, à espera de uma solução “clarificadora”? Em todos
estes degraus de descida se discerne a marca da contradição, a
contradição que está no código genético de todo liberal.

    E uma vez
percebido o logro, pelo amor de Deus, que não se espere chegar até o
fundo do poço. Numerosa ou não, a Resistência tem as bênçãos do Deus da
Verdade. Os que estão organizados, estimulem os que querem se organizar e
ajudem os que estão se organizando, e todos, particularmente os que são
sacerdotes, busquem na confissão da Fé a graça de agir exatamente
conforme os desígnios da Providência.
    Ir. Joaquim Daniel Maria de Sant’ana, FBMV.

[1] Mons.
De Galarreta, o antigo resistente, entrevistado na Polônia (abril de
2013), declarou: “Claro que o melhor seria que Roma renunciasse aos
erros conciliares, regressasse à Tradição e unicamente depois, sobre
esta base, a Fraternidade obtivesse automaticamente um status canônico
na Igreja. Apesar disto, a realidade nos leva a não fazer depender um
eventual acordo de uma grande autocrítica de Roma, mas de uma atribuição
de garantias reais pelas quais Roma, tal como ela é, permita à
Fraternidade permanecer como ela é(…)”

[2] Pe. Pfluger, em entrevista a Kirkliche Umschau.

[3] O
próprio  Capítulo de julho responde que não, ao estabelecer entre as
condições apenas “desejáveis”, a de possuir tribunais, e só de 1ª
instância. Uma vez que se quer o acordo, é inevitável…

[4] O que vai diretamente de encontro à exortação de D. Marcel Lefebvre aos 4 bispos sagrados em 1988.

[5] Em
um artigo do ano passado, dizíamos: “Esta (as autoridades da FSSPX),
segundo toda a probabilidade, saberá tirar proveito dos resultados do
Capítulo, com movimentos calculados e alternados de recuo tático para retomar credibilidade, seguidos de uma nova ofensiva formadora de opinião”.

[6] Onde
certamente participaram as cabeças que ainda pensam bem na
Fraternidade, como Mons. Tissier e o pe. de Cacqueray.  Às vezes a boa
fé da boa gente faz um grande mal…

About these ads

Occasionally, some of your visitors