A revolução teológica de Lutero
A teologia de Martinho Lutero nasceu de sua angústia. Ao invés de basear sua vida espiritual, em busca de equilíbrio, nos ensinamentos da doutrina sagrada, Lutero faz o contrário: «Ele transforma as suas necessidades em verdades teológicas e o seu estado pessoal em lei universal da natureza humana»(1). O centro da teologia não é mais Deus – quem Ele é e o que quer de nós – mas é o próprio Lutero procurando a certeza de sua salvação.
Lutero quer se sentir em estado de Graça. Isto é um erro capital, pois a graça é sobrenatural. Ela é objeto da fé e não pode ordinariamente ser experimentada nem pelos sentidos nem pela inteligência. Haverá sempre, aqui sobre a Terra, o claro-escuro* nas relações entre o homem e Deus: é esta a dificuldade, mas também é esta a grandeza da vida católica.
O monge agostiniano não entendeu, ou não quis entender, esta tensão purificadora querida por Deus. Procurando uma certeza que não é deste mundo, acabou por infringir as certezas sobrenaturais concedidas a este mundo.
Conhecem-se as duas etapas do seu declínio:
– Antes de tudo a desesperação, constatando sua impotência diante ao pecado: ele sobrevalorizou a força do pecado original e as suas consequências.
– E, a grande inversão: a famosa «experiência da torre» – onde ficavam as latrinas do convento – onde, à meia-noite, ele teve de repente a iluminação da salvação pela sola fide. Unicamente pela fé, porque todas as nossas obras são pecados. Estes podem somente ser recobertos pelos merecimentos de Cristo, de modo a não nos serem imputados: e isto seria o estado de graça. E então, para Lutero, eis enfim a paz, a certeza e a consolação da alma.
Tudo isto só foi possível ao preço de um transtorno intelectual radical. Lutero conserva as palavras da revelação cristã (fé, graça, salvação, justificação, etc), mas dá a estes um sentido totalmente novo. A fé não é mais a adesão às verdades reveladas, mas uma espécie de confiança cega. A redenção se realiza somente pela ação divina, sem nenhuma participação ou colaboração humana.
Esta revolução teológica deveria necessariamente chegar até a liturgia, e em particular ao coração da liturgia: o Santo Sacrifício da Missa.
*O chiaroscuro (palavra italiana para «luz e sombra» ou, mais literalmente, «claro-escuro») é uma das estratégias inovadoras da pintura renascentista do século XV.
Aplicação à teologia da Missa
Para Lutero, o estado de graça deixa de ser uma realidade na alma para se tornar uma ficção jurídica: a não imputação dos pecados. Ficção esta que foi alcançada por Cristo pela sua Cruz. E aqui há um primeiro rebaixamento do Sacrifício da Cruz: impotente a curar o homem do pecado, este nos obtêm somente o «manto» dos méritos de Jesus Cristo, a fim de cobrir nossas faltas. Mas este manto deve ser conseguido, e esse é o papel da «fé». E esta fé tem como objeto essencial a promessa de Cristo de esconder os nossos pecados aos olhos do Pai. Para se beneficiar disso, basta ter confiança nesta promessa.
A corrupção do Sacrifício redentor de Cristo leva á corrupção da Missa, que segundo o ensinamento constante da Igreja é a permanência do Sacrifício do Calvário. A dupla consagração do pão e do vinho realiza o Mysterium Fidei: o verdadeiro Corpo e o verdadeiro Sangue de Nosso Senhor, imolados sacramentalmente, tornam presente o único Sacrifício da Cruz, aplicando-nos os frutos. Os cristãos não devem estar alheios a este sacrifício, mas são todos chamados a se unirem a ele. Ora, no sistema luterano isto não é mais possível.
Para Lutero, não há verdadeira remissão dos pecados, mas só a promessa divina de não imputação. Esta promessa foi obtida no momento do Sacrifício de Cristo e basta crer nela para tirar benefício. A única função da Missa é, portanto, a de nos fazer lembrar dessa promessa. A celebração nos ajuda a obter, por meio da fé-confiança, o manto que nos é oferecido.
Para Lutero, Missa = promessa
Lutero ensina:
Acredita-se que a missa seja um sacrifício oferecido a Deus. Ora, no curso da última ceia (Jesus) entregou a nós o seu testamento, ou seja, a sua promessa. Ele não o entregou a Seu Pai (2).
E ainda:
A missa é a promessa que Deus nos fez de redimir nossos pecados. Isto significa que não é o homem o autor da própria salvação, mas é Deus, pela Sua promessa (3).
Consequência lógica:
É um erro evidente e ímpio oferecer ou aplicar a Missa pelos pecados, em satisfação, ou pelos defuntos… A Missa é oferecida por Deus ao homem e não pelo homem a Deus (4).
Fundamentalmente, só haveria na Missa 2 coisas: a promessa divina e a fé humana, esta última recebendo o que a primeira promete.
Contra o Sacrifício
Aquilo que era sacramento se torna um simples excitante para a fé. A noção de Sacrifício desaparece. No máximo, Lutero admite um sacrifício em sentido impróprio, o sacrifício da oração e da penitência, mas nunca um sacrifício propiciatório. Comemora-se o Sacrifício da Cruz, mas não se sacrifica, caso contrário teríamos outro sacrifício, que faria concorrência ao sacrifício da Cruz.
O santo Sacrifício da Missa é assim, para Lutero, um sacrilégio e mesmo o pior dos sacrilégios. É alvo de ataques furiosos:
“O elemento principal do culto deles, a missa, supera toda impiedade e abominação, e eles fazem disso um sacrifício e uma boa obra. Se não houvesse outros motivos para abandonar a batina, para sair do convento e romper os votos, este somente bastaria amplamente.” (5)
Uma boa obra! A ira de Lutero subia ao cúmulo, porque seu sistema não podia admitir as boas obras: o homem, inteiramente corrupto, é incapaz de apresentar a Deus uma só ação que possa agradá-Lo; todas devem ser recobertas pelo manto de Cristo. E ao invés disso a Igreja romana pensa somente em multiplicar as Missas:
Os miseráveis padres de missa, com as confrarias que criam para ganhar dinheiro, com as missas que dizem pelos mortos e pelos vivos, só fazem enganar o povo de insensatos e conduzi-los com eles ao inferno, apropriando-se do seu dinheiro e dos seus bens através de suas mentiras. E é lá que se encontram os fundamentos secretos e ocultos de todo o universo. Todos sabem porque foram estabelecidos os bispados, os cabidos, os conventos e todo o reino dos padres: para celebrar a missa, isto é, para a idolatria mais odiosa que existe sobre a terra (6).
E a Presença Real?
No início, Lutero atacava mais o caráter sacrificatório da Missa que a presença de Jesus na Eucaristia. Mas se a Missa não passa de uma promessa, que será de Jesus Cristo, que é uma pessoa e não uma promessa?
Logicamente, o protestantismo deveria evoluir para a negação total da Presença Real. Calvino reconhece apenas uma presença simbólica. Lutero ainda admite certa presença real, mas variando muitas vezes na explicação desta. Professa muitas vezes a doutrina da “empanação” (o Corpo de Cristo no pão consagrado). Ensina que Cristo está presente durante a cerimônia, mas junto ao pão e ao vinho – que continuam pão e vinho – e unicamente durante a Missa. Autoriza uma elevação em certos casos, para os fracos (7), mas combate decididamente a fé católica na transubstanciação (conversão total da substância do pão e do vinho consagrados, na substância de Jesus Cristo, de tal modo que realmente não há mais nem pão nem vinho, mas somente as suas aparências exteriores).
Escreve:
Na transubstanciação é necessário ver o artifício de uma opinião humana que não encontra apoio nem na escritura nem na razão.
E, desprezando todos os Padres da Igreja (que mesmo sem empregar exatamente o termo transubstanciação, afirmaram a mesma realidade), Lutero ousa pretender:
Por mais de 1200 anos a própria Igreja professou corretamente a sua fé. Em nenhuma parte os Santos Padres pensaram nesta transubstanciação (termo e sonho extravagantes), até o momento em que a pseudo-filosofia de Aristóteles pôs-se a invadir a Igreja (8).
A missa de Lutero
Para uma nova religião, uma nova missa. Mas Lutero conserva certo bom senso. Apesar de sua paixão destruidora, procede com precaução, sobretudo evitando andar muito rápido. Soube aproveitar das experiências e fracassos que seus discípulos tiveram durante o período de sua reclusão no castelo de Wartburg.
Para agir prudentemente precisa partir da situação existente – uma liturgia católica – e fazer as coisas evoluírem pouco a pouco, evitando escandalizar inutilmente os mais simples. Aqui a prudência se confunde com a dissimulação. Um trabalho de ilusionista lhe permite fazer passar ao protestantismo grupos inteiros, sem que as pessoas se dessem conta disto. Lutero e os chefes dos reformadores aprenderam rápido, quase que como por instinto, a técnica revolucionária que consiste em conservar as aparências esvaziando-as de todo conteúdo (9).
Em 1526, Lutero compôs a sua Breve exposição da missa e da comunhão, principal instrumento para conduzir a reforma. Eis um resumo deste documento em12 pontos (10):
- Será conservado oIntroito dos domingos, bem como as festas de Páscoa, Pentecostes e Natal. Mas as festas dos santos serão suprimidas.
- Será conservado o canto do Kyrie Eleison e do Gloria, mas com a possibilidade de suprimi-los em certos dias.
- A Coleta vem conservada, se o que se pede não contradiz o sistema luterano. A invocação dos santos é suprimida.
- É permitido cantar a Epistola de São Paulo e o Evangelho, mas são suprimidas as sequências e as glosas intermediárias.
- Conservar-se-á o canto do Credo, depois do qual se faz a pregação.
- São suprimidos o Ofertório e o Canon, que é o elemento principal da reforma e a principal preocupação de Lutero:
Declaramos em primeiro lugar que nunca foi nossa intenção abolir inteiramente todo o culto de Deus, mas somente a de purgar aquele que é em uso, de todos os acréscimos que o contaminaram: refiro-me a este abominável Canon, que é um acúmulo de lama pantanosa; fez-se da missa um sacrifício; adicionaram-se uns ofertórios. A missa não é um sacrifício ou ação do sacrificador. Vejamo-la como sacramento ou testamento. Chamemo-la bênção, eucaristia ou Mesa do Senhor ,Ceia do Senhor ou Memorial do Senhor. Dê-se a ela outro título qualquer que se deseje, contanto que ela não seja maculada com o nome de sacrifício ou de ação (11).
- Depois do Credo, prepara-se o pão e o vinho. Segue-se o diálogo antes do prefácio e se passa diretamente à consagração.
- É mantida a elevação do pão e do cálice (por causa dos fracos na fé) enquanto se canta o Sanctus e o Benedictus.
- Recita-se o Pater noster, com a omissão do Libera nos.
- O Pax vobis é considerado como uma espécie de absolvição coletiva dos pecados.
- A comunhão é dada sob duas espécies, enquanto se canta o Agnus Dei.
- A Antífona de comunhão é facultativa; a Postcommunio é suprimida. O Ite missa est é substituído pelo Benedicamus Domino seguido da benção.
A transformação é radical: não se trata mais do Sacrifício da Missa, mas de uma ceia eucarística que comemora a Ceia do Senhor.
Todavia, aos olhos dos fiéis, as mudanças são mínimas, porque os ritos mais visíveis são mantidos, assim como os cantos. Lutero insiste muito nos cantos, que contribuem para dar a sensação de alegria e pacificação da consciência. Ao mesmo tempo, adota a língua vulgar. Mas não quer acelerar as coisas, sabe dissimular os seus objetivos e não hesita em minimizar a sua iniciativa. A propósito da sua Breve exposição da missa e da comunhão, ele escreve, melífluo e enganador:
Antes de tudo, suplico amigavelmente […] todos aqueles que quiserem examinar ou seguir o presente ordenamento do serviço divino, a não vê-lo como uma lei compulsória e a não se deixar cativar a própria consciência. Que cada um o adote quando, onde e como quiser. Assim quer a liberdade cristã (12).
O Concílio de Trento
As novidades protestantes serão solenemente condenadas no Concílio de Trento. A doutrina do Santo Sacrifício da Missa é definida na XXII sessão, em 1562:
E como neste divino sacrifício, que se realiza na missa, se encerra e é imolado de modo incruento o próprio Cristo, que se ofereceu de uma vez por todas de modo cruento no altar da cruz, o santo Concílio ensina que este sacrifício é verdadeiramente propiciatório, e que por meio dele, se com coração sincero e verdadeira fé, com temor e respeito, contritos e arrependidos nos achegarmos a Deus, conseguiremos misericórdia e acharemos graça no auxílio oportuno. Porquanto, aplacado o Senhor com a oblação dele e concedendo o dom da graça e da penitência, perdoa os maiores delitos e pecados. Pois uma e mesma é a vítima: e aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que, outrora, se ofereceu na Cruz, divergindo, apenas, o modo de oferecer. Os frutos da oblação cruenta se recebem abundantemente por meio dessa oblação incruenta, nem tampouco esta derroga aquela. Por isso, com razão se oferece, consoante a Tradição apostólica, este sacrifício incruento, não somente pelos pecados, pelas penas, pelas satisfações e por outras necessidades dos fiéis vivos, mas também pelos que morreram em Cristo, e que não estão plenamente purificados [DS 1743].
Para bem manifestar o caráter obrigatório, e portanto infalível, deste ensinamento, os canones anatematizam os que o recusam:
Can. 1 – Se alguém disser que na missa não se oferece a Deus um verdadeiro e próprio sacrifício, ou que oferecer-se Cristo não é mais que dar-se-nos em alimento: seja anátema [DS 1751].
Can. 3 – Se alguém disser que o sacrifício da missa é somente um sacrifício de louvor e de ação de graças ou uma simples comemoração do sacrifício oferecido na cruz, e não um sacrifício propiciatório; ou que só aproveita ao que comunga, e que se não deve oferecer pelos vivos e defuntos, pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades: seja anátema. [DS 1753].
E para proteger a tradição litúrgica contra os hereges, Pio V restaura, codifica e impõem o rito romano da santa Missa. A sua bula Quo primum opõe aos desvios uma barreira que parece intransponível.
Da ceia protestante à missa ecumênica
Todavia, quatro séculos depois, a missa de Lutero inegavelmente influenciou os autores da nova missa, chamada de «missa de Paulo VI».
O Pe. Annibale Bugnini, principal executor da reforma litúrgica, claramente confessou que esta foi feita:
para facilitar aos nossos irmãos separados o caminho da união, descartando toda pedra que pudesse constituir nem que fosse uma sombra de risco de se tornar uma pedra de tropeço ou um motivo de descontentamento(13).
O próprio Paulo VI confiou ao seu amigo, o escritor Jean Guitton, que sua intenção de mudar a Missa vinha do desejo de aproximação com os protestantes. Guitton testemunha:
A intenção de Paulo VI sobre o que é comumente chamada a Missa, era a de reformar a liturgia católica de tal modo que pudesse quase coincidir com a liturgia protestante. Tinha Paulo VI a intenção ecumênica de tirar, ou ao menos de corrigir, ou pelo menos de enfraquecer, aquilo que era por demais católico em sentido tradicional na Missa e, repito, aproximar a missa católica da missa calvinista (14).
Tomar-se-ia o caminho litúrgico já percorrido pelos protestantes, mas com outra intenção: não mais herética (rejeição da doutrina católica da Missa), mas ecumênica: favorecer a unidade dos cristãos. Todavia, a intenção, por mais que pareça tranquilizadora, não muda nada na destinação de tal caminho.
Não somente os inovadores retomaram o caminho de Lutero, mas eles também chamaram seus herdeiros para colaborar na confecção da nova missa: é conhecida a célebre fotografia na qual Paulo VI está com os pastores protestantes: George, Jasper, Shephard, Konneth, Smith e Max Thurian, convidados a auxiliar nos trabalhos da comissão que preparavam a nova liturgia.
Em 3 de abril de 1969, o Papa Paulo VI assinava a constituição apostólica Missale Romanum, promulgando o Missal Romano renovado por ordem do concilio ecumênico Vaticano II. O objetivo ecumênico foi alcançado, já que numerosos protestantes declararam poder celebrar a santa Ceia com as mesmas orações da Igreja católica: «Teologicamente, é possível», afirmou Max Thurian, da comunidade de Taizé (15).
Em 19 de novembro de 1969, em uma alocução, Paulo VI reconhecia que a introdução do novo rito era «algo surpreendente, extraordinário, pois a Missa é considerada como a expressão tradicional e intangível de nosso culto religioso, da autenticidade da nossa fé.»
Mas pedia: «que se compreendesse que nada mudou na substância de nossa Missa tradicional», e concluía: «Não devemos falar de nova Missa, mas de nova época na vida da Igreja» (16).
Os católicos que queriam se tranquilizar, o conseguiram. Todavia, no jornal La Croix de 10 dezembro 1969, Jean Guitton diz ter lido em «uma das mais importantes revistas protestantes» a seguinte afirmação: «As novas orações eucarísticas católicas abandonaram a falsa perspectiva de um sacrifício oferecido a Deus»; enquanto que o prior de Taizé declarava:
De minha parte, tenho certeza que no novo Ordo Missae a substância da missa é a mesma que aquela que foi vivida e rezada antes. Paulo VI nos dá a mesma confirmação. Mas aquilo que cria problemas para o católico normal é isto: como é possível que as mudanças da Missa possam ser secundárias para os católicos e ao mesmo tempo essenciais para os protestantes? O Papa nos disse que a nova missa é a Missa de sempre, simplesmente liberada de adições supérfluas, herança dos séculos passados. E esta é também a opinião dos estudiosos beneditinos, aliás considerados integristas (17).
De fato, a nova liturgia não suprimiu aquele mínimo requerido para a validade da Missa: a dupla consagração. Portanto, querendo, se pode achar aí a substância da Missa católica. Mas estes «estudiosos beneditinos, considerados integristas» (é necessário pouco para sê-lo, sobretudo aos olhos dos protestantes), tiveram o trabalho de comparar a nova missa com a de Lutero? Compararam com a missa do anglicano Cranmer (18)? Teriam constatado as surpreendentes semelhanças que vão sempre na mesma direção:
– eliminação de tudo o que exprime claramente a natureza de sacrifício da Missa (e sobretudo o seu caráter propiciatório);
– eliminação de tudo o que lembra mais claramente a distinção essencial entre o sacerdote (que oferece o sacrifício enquanto ministro de Cristo), e os fiéis que se unem ao sacrifício;
– Enfim, enfraquecimento de tudo o que põe em relevo a transubstanciação operada nas duas consagrações.
A missa de Paulo VI não é claramente protestante, mas ela é despojada de tudo o que protegia a significação católica do rito. Ela é ambígua. Ao invés de querer a todo custo interpretá-la de maneira católica, os «estudiosos beneditinos, considerados integristas» deveriam lembrar que se tratam de ambiguidades análogas às que, no século XVI, fizeram cair na heresia os fiéis da Alemanha, Suécia, Dinamarca, Noruega, Inglaterra, etc.
Comparação dos ritos
Muitos trabalhos, mais ou menos detalhados, analisaram os problemas suscitados pela nova liturgia (19). Assinalaremos aqui apenas alguns elementos que aproximam a nova missa da ceia protestante:
1) Abolição da antiga orientação do altar, que frequentemente se torna apenas uma simples mesa (em contradição com a encíclica Mediator Dei).
2) Supressão do duplo Confiteor, que distinguia claramente o sacerdote, ministro de Cristo, e os fiéis.
3) Supressão de várias orações que mostravam o caráter propiciatório do Sacrifício: Aufer a nobis, Offerimus tibi, etc.
4) Nova organização das leituras, subordinando o aspecto litúrgico ao aspecto catequético.
5) Supressão do Offertorio.
Em lugar da oração tradicional:
Recebei, santo Pai, Deus onipotente e eterno, esta hóstia imaculada, que eu, vosso indigno servo, vos ofereço, ó meu Deus, por meus inumeráveis pecados, ofensas e negligências, por todos os presentes, e por todos os fiéis cristãos, vivos e defuntos, a fim de que a mim e a eles este sacrifício aproveite para a salvação na vida eterna. Amém.
Tem-se hoje uma oração hebraica para a benção da mesa, que elimina as idéias de sacrifício e propiciação:
Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa bondade, fruto da terra e do trabalho do homem, que agora vos apresentamos, e para nós se vai tornar pão da vida.
6) Multiplicação das «orações eucarísticas», em lugar do venerável Canon romano que Lutero odiava e que o Concílio de Trento elogiava: ver DS 1745 e 1756.
7) Recitação da “oração eucarística»’ em alta voz (contra a prescrição do Concílio de Trento:
«Se alguém disser que o rito da Igreja romana, segundo o qual uma parte do Canon e as palavras da Consagração se pronunciam em voz baixa, deve ser condenado; ou que a Missa deve ser celebrada somente na língua vulgar; […] seja anátema» (DS 1759).
8) Supressão da distinção entre o modo narrativo e o modo intimativo nas fórmulas da consagração, etc.
Basta comparar o novus Ordo de Paulo VI à «Breve exposição» de Lutero ou às insinuantes reformas do anglicano Cranmer (20), para que se fique impressionado com a semelhança dos procedimentos.
A diferença
Todavia, entre a revolução litúrgica do século XVI e a do século XX, a situação não é idêntica. A missa de Lutero foi concebida para permitir aos ministros «reformados» trocar com discrição a religião do povo ingênuo. A missa nova de Paulo VI, mais matizada, é voltada antes de tudo aos ministros, para mudar pouco a pouco a fé e a intenção deles na celebração das missas. Este processo mais sutil não teria sucesso num contexto de aberta revolta contra a autoridade de Roma, como aconteceu no protestantismo, mas sim no contexto do processo revolucionário interno da Igreja pós-conciliar, pois ele foi encorajado pela própria autoridade de Roma, ocupada pelos modernistas.
No que diz respeito às consequências, encontram-se ainda importantes diferenças: no protestantismo se verificou um fracionamento puro e simples, que gerou confissões e autoridades sem número; no catolicismo se verificou uma desorientação doutrinal sem precedentes e um grande espírito de independência, porém isto sem abolir a autoridade romana, a qual verdadeiramente não se exerce, já que ela substituiu o ensinamento dogmático pelo diálogo; mas esta ainda permanece oficialmente, como que para garantir a suposta legitimidade do processo. (21).
Para concluir, citemos o bem conhecido, mas sempre impressionante juízo dos cardinais Ottaviani e Bacci:
«… o Novus Ordo Missæ, se considerarmos os elementos novos, suscetíveis de apreciações diferentes, que ali aparecem subentendidos ou implicados, se afasta de um modo impressionante, seja no conjunto como nos detalhes, da teologia católica da Santa Missa, tal como foi formulada na Sessão XXII do Concílio Tridentino, o qual, fixando definitivamente os «canones» do rito, elevou uma barreira intransponível contra qualquer heresia que tentasse atingir a integridade do Mistério» (22).
Não é por acaso que estes grandes homens da Igreja enfatizaram a oposição entre a nova missa e os ensinamentos do Concílio de Trento, que condenou Lutero. Os decretos tridentinos atingem em conjunto e de um só golpe tanto a missa de Lutero como a missa de Paulo VI. Uma e outra devem ser fortemente rejeitadas, enquanto derivadas da mesma fonte envenenada. À maneira protestante ou à maneira modernista, a subversão anti-católica produziu a mesma mudança radical do eixo religioso: Deus substituído pelo gênero humano (23). Por um ou por outro modo, ela progride com as mesmas ambiguidades calculadas e com os mesmos deslizamentos sucessivos.
Compreende-se, portanto, porque Mons. Lefebvre recomendou manter cuidadosamente distância da Igreja conciliar.
NOTAS
1 – Jacques Maritain, Trois Réformateurs [Lutero, Descartes e Rousseau], Paris, Plon, 1925, p. 14.
2 – Citação tirada da obra de Lutero: De la captivité Babylonienne de l’Église, in Oeuvres completes de Luther, t. 2, ed. Labor et fides, p. 178 ss.
3 – De la captivité Balylonienne de l’Église, ed. Labor et fides, ibid.
4 – Citado por Léon Cristiani, Du luthéranisme au protestantisme, 1910, p. 176.
5 – Citado por Léon Cristiani, Du luthéranisme au protestantisme, 1910, p. 258.
6 – Cfr. Luther, Werke, t. III, pp. 522 ss.
7 – Veja-se Bossuet, Histoire des variations des Églises protestantes.
8 – Citação tirada da obra de Lutero: De la captivité Babylonienne de l’Église, in Oeuvres complètes de Luther, t. 2, ed. Labor et fides, p. 178 ss.
9 – Sobre estes procedimentos enganadores veja-se Jacques Maritain, Trois Réformateurs, Paris, Plon, 1925, pp. 246-247 (nota 10).
10 – Nós nos apoiamos em Ricardo Villoslada, Martin Lutero, Madrid, BAC, 1976, t. II, pp. 98-99.
11 – Lutero (Werke, t. XI, p. 774).
12 – Cristiani, ibid, p. 314.
13 – Annibale Bugnini, DC n. 1445 (1965), col. 604.
14 – Jean Guitton, no debate organizado em Lumière 101, jornal do domingo de Radio Courtoisie, 19 dezembro 1993, a respeito do livro de Yves Chiron, Paul VI, le pape ècartelé.
15 – Ver o jornal La Croix, de 30 maio 1969.
16 – Audiência geral de 19 novembro 1969 – http://w2.vatican.va/content/paul-vi/it/audiences/1969/
documents/hf_p-vi_aud_19691119.html
17 – Relatado por Louis Salleron em La Nouvelle messe, Paris, NEL, 1976, p. 122.
18 – Veja em Michael Davies, La riforma liturgica anglicana, traduzida por Radicati nella Fede – http://radicatinellafede.blogspot.it/p/la-riforma-liturgica-angicana-pdf.html
19 – Veja o cap. 7 – «La nuova messa» – do Catechismo della crisi nella Chiesa, de Don Matthias Gaudron, ed. Ichthys, Albano Laziale.
20 – O primeiro Prayer Book anglicano (1549) suspendeu o ofertório, modificou o canon e adotou a versão luterana da história da instituição: passou em silêncio o sacrifício propiciatório, mas não o negou explicitamente. Foi uma primeira etapa. Quando o livro foi aceito em toda parte, veio então um segundo Prayer Book, claramente mais protestante. Veja-se Michael Davies, La riforma liturgica anglicana, cit.
21 – Entendemos assim a grande sutileza, mas também a grande malícia do processo que vivemos atualmente, bem definido por Mons. Lefebvre como «O golpe de mestre de Satanás»: a introdução dos princípios revolucionários na Igreja católica pela autoridade da Igreja.
22 – http://www.unavox.it/doc14.htm
23 – Denifle já tinha percebido que em Lutero, «o culto de Deus se transforma inteiramente em um culto do homem”. Em relação a Deus, o homem não existe; não pode prestar a Ele nenhum culto, e Deus não lhe pede nem obras, nem dons; o homem só pode ter algum valor ou desenvolver alguma atividade em relação ao seu próximo, no máximo pensando um pouco em Deus (Citado por Jacques Maritain, Trois Réformateurs, p. 255, nota 20).
Terminado de traduzir por Marcello A. Tonidàndel Orciuoli em 11 de Novembro de 2017 dia de São Martinho de Tours +AMDG+
Padre Joaquim, F.B.M.V.